domingo, 13 de janeiro de 2013

Um mundo é o bastante?


A conservação dos recursos naturais é crucial desde agora.


Se a emissão atual de gás carbônico na atmosfera não for refreada antes de 2016, é bastante provável que a temperatura média do planeta suba mais do que 2oC. Caso aumente entre 1,4oC e 5,8oC, confirmando o cenário projetado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para 2100, o próximo século viverá encrenca grossa.

Fazer previsões é sempre muito arriscado, mas os cientistas só podem usar os dados de que dispõem. Na verdade, a cada ano os estudos sobre a crise ecológica se acumulam e os cenários se agravam. Se o IPCC estiver certo, há chances de “mudanças radicais, prejudiciais, abruptas e potencialmente irreversíveis”, que deveriam ser evitadas. Com mais calor, o nível do mar deverá subir entre 8 e 88 centímetros, acarretando maior incidência de inundações, secas e epidemias. A degradação ambiental vai prejudicar a capacidade do planeta fornecer peixes e água doce, reciclar nutrientes do solo e controlar o próprio clima. O número de espécies da flora necessárias para assegurar o equilíbrio cairá, em prejuízo da qualidade do ar. Parte substancial da fauna desaparecerá.

A Terra está entrando numa nova era geológica, afirma um grupo de estratígrafos, deixando o atual período Holoceno e inaugurando o Antropoceno, a época em que a ação humana constitui um fator de mudanças geofísicas, “a idade recente do homem”, segundo o químico holandês Paul Crutzen. Com efeito, se a população mundial chegar a nove bilhões de pessoas em 2050, e estabilizar, como prevê a ONU, aumentará a pressão por alimentos, água, madeira, fibras e combustível – e a busca do padrão de consumo do Primeiro Mundo. Diante dos impactos previsíveis, a conservação dos recursos naturais torna-se crucial, desde agora.

Quanto mais próspera a sociedade, mais pobre o planeta? A equação perversa é lógica antes de futurologia: com nove bilhões os recursos e os serviços ecossistêmicos estarão comprometidos, sim, a menos que ocorram mudanças tecnológicas e sociais decisivas. Em geral, historicamente, as previsões apocalípticas subestimam o poder da inovação e da necessidade. Mas, se os impactos negativos se acumularem, as Metas de Desenvolvimento do Milênio, definidas pela ONU, no ano 2000, para erradicar a fome, a mortalidade infantil e as doenças, não serão atingidas. “Se continuar como está, em 2050 a humanidade atingirá um ponto sem retorno”, diz o biólogo Thomas Lovejoy, conselheiro-chefe de Biodiversidade do Banco Mundial. Em outras palavras, se o homem não aposentar as tecnologias poluentes e der um ponto final ao desperdício, era uma vez a biodiversidade. Mais uma tragédia anunciada.


 
Tartaruga de Galápagos

Estado do Planeta

Nunca houve tantos e tão convincentes estudos sobre a saúde do planeta. Aos poucos, os ambientalistas ganham eloquência para questionar o modelo de desenvolvimento dominante e apontar correções. De acordo com o Relatório de Avaliação Ecossistêmica do Milênio, publicado em 2005, que reuniu 1,36 mil especialistas de 95 países para avaliar o impacto das mudanças ambientais sobre o bem-estar humano, a Terra nunca foi tão degradada como nos últimos 50 anos. Nada menos que 60%, ou 15 dos 24 serviços ecossistêmicos examinados, têm sido usados de forma não sustentável.
Entre 1960 e 2000, período em que a economia global cresceu mais de seis vezes, a demanda ligada a serviços dos ecossistemas – pesca, fornecimento de água, tratamento de resíduos, regulação climática e qualidade do ar – acompanhou o aumento da população. Enquanto esta duplicava, duplicou a extração de água dos rios e lagos e a capacidade hidrelétrica instalada. O volume de água confinada em diques quadruplicou e o de água retida nos reservatórios já é de três a seis vezes maior do que o dos cursos d’água naturais. Quanto à produção de alimentos, cresceu 2,5 vezes; a produção de madeira de corte aumentou mais de 50% e a exploração de madeira para papel e celulose triplicou.

Desde 1750, a concentração atmosférica de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera aumentou 32%, sobretudo em decorrência da combustão de combustíveis fósseis e mudanças no uso do solo. Quase 60% desse aumento foi registrado a partir de 1959. De 1945 em diante, mais terras foram convertidas em lavouras do que nos séculos 18 e 19 juntos. A atividade agrícola já absorve quase 70% de toda a água usada no mundo. Florestas, savanas e manguezais estão desaparecendo em ritmo alarmante. Com a rarefação da cobertura vegetal, o número de espécies da flora e da fauna entrou em declínio veloz, aponta o estudo. Nos últimos séculos, a taxa de extinção aumentou mil vezes em comparação com outras taxas históricas.Segundo o ecólogo sueco Johan Rock-ström, estamos diante do sexto maior evento de extinção de espécies da história da Terra (o primeiro foi a extinção dos dinossauros no período Terciário, que levou à ascensão dos mamíferos). De 10% a 30% das espécies de mamíferos, aves e anfíbios começaram a desaparecer.

Outro levantamento – o Relatório Planeta Vivo 2010, publicado pela organização ambientalista World Wildlife Fund (WWF) – indica que, nos últimos 40 anos, o mundo perdeu 30% de sua biodiversidade. Nos países tropicais – entenda-se Brasil e a Amazônia em particular –, a ferida é mais profunda e sacrificou quase 60% da fauna e flora originais. Comparativamente à última medição do Índice Plane- ta Vivo (IPV), que monitora a saúde de 8 mil populações de mais de 2,5 mil espécies desde 1970, as conclusões são mais preocupantes: a ação antrópica (derivada do homem) está superando a biocapacidade do planeta em 50%, o que significa que devastamos em um ano o que os ecossistemas demoram 18 meses para repor.



Fazenda desmatada na Terra do Meio, no Pará, em 2004.  


Valoração em alta

Se nos contos de fada a biodiversidade representava a mesa farta que provê a vida ao homem, nos manuais de subsistência atuais ela nos obriga a aprender a viver. Diante dos flagelos ambientais que a era pós-industrial impõe ao planeta, a humanidade precisa aprender a tratar o ambiente como um organismo vivo exposto a uma doença. Mais: entender que desse metabolismo em reequilíbrio depende seu bem-estar e sobrevivência. Ainda não deixamos de interferir em paisagens intactas e de dizimar florestas primárias, premidos pela necessidade de alimentar sete ou nove bilhões de bocas. Mas, ao menos, já plantamos a semente do basta.
A mudança é sutil, se comparada à gravidade dos números da degradação ambiental, mas ainda assim é uma inflexão importante: o homem percebeu que, por trás de nomes científicos de espécies que nunca verá, se encontra sua própria salvação. Ou, como explica Lovejoy, por trás do veneno de uma Lachesis muta, serpente conhecida no Brasil como surucucu, está a fórmula da regulação da pressão arterial dos hipertensos. Da mesma forma, “enquanto o caramujo rosado garantiu a cura da doença de Hodgkin, aprendemos que uma substância química da saliva das sanguessugas se presta a dissolver coágulos de sangue durante cirurgias, e que a casca do teixo-do-pacífico oferece es- perança às vítimas de câncer de ovário”, escreveu o entomologista Edward Wilson no livro best-seller de 1992, A Diversidade da Vida. “É por isso que se deve zelar pelos recursos naturais do globo.”

Mas não só por isso. O homem constatou que os custos econômicos da extinção da biodi- versidade e do desmatamento são sempre altos e aprendeu a atribuir valor aos recursos naturais que ainda restam à sua volta, ressalta o ecólogo brasileiro José Galizia Tundisi, do Instituto In- ternacional de Ecologia: “Áreas protegidas com mananciais de boa qualidade precisam de pou- co investimento em tratamento. Cerca de R$ 3 por mil metros cúbicos de água tratada, no má- ximo. Mas, quando há desmatamento e degra- dação dos mananciais, esse custo pode chegar a R$ 300 por mil metros cúbicos.”

O homem aprendeu que o colapso da pesca de bacalhau em Newfoundland, Canadá, em 1992, em consequência da superexploração, resultou na perda de milhares de empregos e custou pelo menos US$ 2 bilhões em seguro-desemprego. Compreendeu que o surgimento de algas nocivas em zonas costeiras, como na Itália, em 1989, também por ação antrópica de- senfreada, acarreta prejuízo de US$ 10 milhões ao setor de aquicultura e elimina US$ 11,4 milhões de receita da atividade turística nacional. E descobriu que inundações provocadas por erosão do solo causam epidemias de cólera na Somália, Tanzânia ou em Moçambique. 

Desmatamento desenfreado

Segundo o estudo Planetary Boundaries, coordenado por Rockström na Universidade de Estocolmo, neste meio século, mais do que ultrapassar três das nove fronteiras planetárias tidas como “espaço operacional seguro para a humanidade”– clima, biodiversidade e poluição de fósforo e de nitrogênio –, o que o homem fez foi rever conceitos.
Um deles é o mito da Amazônia. O desmatamento da floresta se tornou efetivo entre os anos 1960 e 70, quando, em plena ditadura militar, o presidente Emílio Médici promoveu “a integração nacional”, doando “terra sem homens para homens sem terra”. Considerada improdutiva, e assombrada pelo fantasma político da Revolução Cubana, que instalou campos de guerrilha nas florestas do Pará, a Amazônia passou a ser sistematicamente degradada. Diante de suas intermináveis distâncias e da ausência de mercados, prosperaram as atividades produtivas mais autossuficientes e toscas: de madeira, garimpo, mineração e pecuária.

Resultado: entre 1972 e 2012, a taxa de desmatamento passou de 1% para 18%. Grandes rodovias, como a Transamazônica, flanquea- ram o sacrifício de matas e sua fauna. Entre os anos 1970 e 1980, a média anual de desma- tamento chegou a 19.840 quilômetros quadrados – uma área equivalente à de Israel. O mundo considera o Brasil um insaciável destruidor de florestas.

O impacto sobre o banco das espécies vivas pode ser medido pelo fato de uma única árvore amazônica abrigar 1,7 mil tipos de invertebrados, de formigas a aranhas, de abelhas a besouros. Só 10% dessa biodiversidade foi catalogada pela ciência, enquanto é das florestas tropicais que provêm 25% de todas as substâncias usadas no tratamento de câncer, segundo o Instituto Nacional do Câncer dos EUA. Queimamos um banco central de inovações químicas.
Não por acaso, entre as riquezas imediatas, a floresta escondia o maior garimpo a céu aberto, Serra Pelada, no Pará, para o qual afluíram, no auge da corrida pelo ouro, nos anos 1980, 100 mil garimpeiros, para trabalhar em condições subumanas de higiene e trabalho, poluindo de forma irreversível a água e o solo. Nesse mesmo período, obras faraônicas, como as hidrelétricas de Tucuruí, sobre o Rio Tocantins, e de Balbina, perto de Manaus, foram construídas inundan- do florestas sumariamente.

Economias toscas geram relações sociais correspondentes. Nos anos 1990, ainda estarrecida com a repercussão do assassinato de mais um líder sindical rural, o seringueiro Chico Mendes, em 1988, a Amazônia assistiu a uma nova e assustadora expansão predatória da pecuária. Entre 1990 e 2007 seu rebanho bovino passou de 26,6 milhões para 70 milhões de cabeças. O ano de 1995 testemunhou um recorde histórico: 29.059 km2 desmatados.

A década culminou com a realização da Eco- 92, no Rio de Janeiro, um divisor de águas na emergência do eco- logismo e da susten- tabilidade. No Rio, finalmente, “a biodiversidade foi elevada ao status de problema internacional”, nota Lovejoy.



 Boiada na Transamazônica

Urgência urgentíssima

Cada vez mais pressionado pela comunidade internacional, o Brasil registrou avanços desde então: a demarcação de terras indígenas ganhou fôlego – em 1972, havia 200 mil índios; hoje, eles são 900 mil –, enquanto as unidades de conservação também se multiplicaram pelo País, totalizando, em 2010, 1.174.258 km2 ou 23,5% do território, contra 28.087 km2 nos anos 1970. Uma conquista, sem dúvida. Apenas 13% da superfície de terra do planeta e 7% dos mares costeiros estão protegidos.

O novo milênio trouxe à Amazônia feições mais civilizadas: com 24 milhões de habitantes e taxa de crescimento superior à média nacional, segundo o Instituto Brasileiro de Geo- grafia e Estatística (IBGE), a região é hoje alvo de políticas de maior controle do agronegócio, da mineração, da pecuária e da exploração de madeira. O desmatamento caiu de 29 mil km2 para 7 mil km2 – outra notável conquista.

Recentemente, porém, o modelo imediatista parece ter ganho contornos sombrios com a atual revisão do Código Florestal, que propõe uma legislação ambiental mais branda, para surpresa da comunidade científica. O biólogo Carlos Joly, criador do Programa Biota, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), considera a mudança em curso o “pior revés ambiental da história do País em meio sé- culo, com severas e irreversíveis consequências para muito além das suas fronteiras”.

A morte da Floresta Amazônica pode estar na próxima esquina, admite Lovejoy. “O Banco Mundial encomendou um estudo para avaliar a possibilidade de a chamada região do Arco do Desmatamento (que atravessa Pará, Mato Grosso, Rondônia e Acre) desaparecer em decorrência de um aumento de 2,5°C na temperatura do planeta, associado a incêndios e desmatamentos. Os resultados sugerem que o gatilho pode ser uma taxa total de desmatamento de 20%. Atualmente, o índice é 18%.” O biólogo americano não está preocupado com acusações de catastrofismo: “Se a temperatura do planeta realmente subir mais do que 2oC, a Terra mer- gulhará realmente na sexta maior extinção em massa da sua história.”

Engana-se quem projeta a tragédia para um futuro muito distante. Todas as autoridades científicas são unânimes em situá-la entre os próximos 50 e 100 anos, se o atual padrão de destruição for mantido. Se, na maratona pela preservação da sua espécie, o homem mal começou a correr e a se questionar, pergunta-se, antes de mais nada: vai dar tempo?


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Fonte:  Revista Planeta Edição 482, novembro/2012

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